17. As reflexões teológicas
ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma
mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum
confronto com o contexto atual no que este tem de inédito para a história da humanidade.
Por isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências face
ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos brevemente a
considerar o que está a acontecer à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das
mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos
de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora
a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje
lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução
biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objetivos desta mudança
rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para
um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável,
mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da
qualidade de vida de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de
confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da
sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se uma
crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da
natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer
ao nosso planeta. Façamos uma resenha, certamente incompleta, das questões que
hoje nos causam inquietação e já não se podem esconder debaixo do tapete. O objetivo
não é recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas tomar
dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que
acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças
climáticas
Poluição, resíduos e cultura
do descarte
20. Existem formas de
poluição que afetam diariamente as pessoas. A exposição aos poluentes
atmosféricos produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente
dos mais pobres, e provocam milhões de mortes prematuras. Adoecem, por exemplo,
por causa da inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos
combustíveis utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a
poluição que afeta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria,
pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da
água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em
geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única
solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que
existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando
outros.
21. Devemos considerar também
a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em
variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de
resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais,
detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioativos. A terra, nossa casa, parece transformar-se
cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta, os
idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora veem submersas
de lixo. Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos utilizados nas
cidades e nos campos podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos
dos moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o
nível de presença dum elemento tóxico num lugar. Muitas vezes só se adotam
medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.
22. Estes problemas estão
intimamente ligados à cultura do descarte, que afeta tanto os seres humanos
excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se, por
exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado.
Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é
exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os
herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem
significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova
geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de
produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar
resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de
produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que
exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o
seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e
reciclando-os. A resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a
cultura do descarte que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota-se que
os progressos neste sentido são ainda muito escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum,
um bem de todos e para todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a
ver com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso
científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento
do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por
uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda
com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa
atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenômeno particular. A
humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos
de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo
menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros fatores
(tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o ciclo
solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do
aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases
com efeito de estufa (dióxido de carbono, metano, óxido de azoto, e outros)
emitidos sobretudo por causa da atividade humana. Concentrando-se na atmosfera,
estes gases dificultam a evasão do calor que a luz do sol produz sobre a superfície
da terra. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento
baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema
energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização
do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24. Por sua vez, o
aquecimento influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava
ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos
essenciais como a água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais
quentes e provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O
derretimento das calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com
uma libertação, de alto risco, de gás metano, e a decomposição da matéria
orgânica congelada poderia acentuar ainda mais a emissão de dióxido de carbono.
Entretanto a perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam
a mitigar a mudança climática. A poluição produzida pelo dióxido de carbono
aumenta a acidez dos oceanos e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a
tendência atual se mantiver, este século poderá ser testemunha de mudanças
climáticas inauditas e duma destruição sem precedentes dos ecossistemas, com
graves consequências para todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode
criar situações de extrema gravidade, se se considera que um quarto da
população mundial vive à beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das
megacidades estão situadas em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são
um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas,
distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios
para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas
décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afetados por fenômenos relacionados com o aquecimento,
e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos
chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos
florestais. Não possuem outras disponibilidades econômicas nem outros recursos
que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações
catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de proteção. Por
exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e vegetais
que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afeta os recursos
produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com grande
incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o aumento
de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental, que, não
sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o
peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa. Infelizmente,
verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que estão
acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de reações
diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do sentido de
responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a
sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm
mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em
mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir
alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam
que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais
de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento
de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de dióxido
de carbono e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por
exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia
renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis.
Mas ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação.
Entretanto, nalguns países, registaram-se avanços que começam a ser
significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve
também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que
consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como
em modalidades de construção ou restruturação de edifícios para se melhorar a
sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se
tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da
situação atual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem
conhecida a impossibilidade de sustentar o nível atual de consumo dos países
mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de
desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos
limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da
pobreza.
28. A água potável e limpa
constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a
vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes
de água doce fornecem os sectores sanitários, agropecuários e industriais. A
disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo,
mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves
consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de
importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos
momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com
imparcialidade. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África,
onde grandes sectores da população não têm acesso a água potável segura, ou
sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há
regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez.
29. Um problema
particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que
diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças
relacionadas com a água, incluindo as causadas por micro-organismos e
substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e
reservas de água inadequados, constituem um fator significativo de sofrimento e
mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados
pela poluição produzida por algumas atividades extrativas, agrícolas e
industriais, sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles
suficientes. Não pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os
detergentes e produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do
mundo continuam a ser derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da
água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para
se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis
do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à
água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua
dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores
contribuições econômicas para prover de água limpa e saneamento as populações
mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países
desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem
grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão
educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes
comportamentos num contexto de grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de
água provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que
dependem do seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda
escassez de água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas
urgentes. Os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de
pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais
se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra
estão a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a
economia e a atividade comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques
implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro,
recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a
cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que
podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou
regular algum problema ambiental.
33. Entretanto não basta
pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais «recursos» exploráveis,
esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares
de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos
filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas
extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa
causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência,
nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer.
34. Possivelmente
perturba-nos saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua maior
visibilidade; mas, para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são
necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a
variedade inumerável de micro-organismos. Algumas espécies pouco numerosas, que
habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória
fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano
deve intervir quando um geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de
intervenção humana numa realidade tão complexa como a natureza é tal, que os
desastres constantes causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção
dele de modo que a atividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos
que isto implica. Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção
humana, para resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a
situação. Por exemplo, muitos pássaros e insetos, que desaparecem por causa dos
agrotóxicos criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o
seu desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que
possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes,
admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos
problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de
que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do
consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e
bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o
desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem
limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza
insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.
35. Quando se analisa o
impacto ambiental de qualquer iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo
cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou
de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os
novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando
posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as
populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que
algumas espécies correm o risco de extinção. Existem alternativas que, pelo
menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de corredores biológicos,
mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e prevenção. Quando se
explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade
de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente
desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos
ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato,
porque, quando se busca apenas um ganho econômico rápido e fácil, já ninguém se
importa realmente com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela
negligência egoísta é muitíssimo maior do que o benefício econômico que se
possa obter. No caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de
valores que excedem todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas
mudas de gravíssimas desigualdades, quando se pretende obter benefícios
significativos, fazendo pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os
altíssimos custos da degradação ambiental.
37. Alguns países fizeram
progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos
oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua
fisionomia ou alterar a sua constituição original. No cuidado da
biodiversidade, os especialistas insistem na necessidade de prestar uma
especial atenção às áreas mais ricas em variedade de espécies, em espécies
endémicas, raras ou com menor grau de efetiva proteção. Há lugares que requerem
um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial,
ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras
formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo,
os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia
fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância
destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se
pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma
biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer
completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para
desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas
transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares,
impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os
enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles,
podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de
internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos
internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações
e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de
pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de
preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a
espúrios interesses locais ou internacionais.
39. Habitualmente também não
se faz objeto de adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas
florestais com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode afetar
gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se
implantam. Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos
agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante,
nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por
manguezais.
40. Os oceanos contêm não só
a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade
dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por
diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre
grande parte da população mundial, é afetada pela extração descontrolada dos
recursos ictíicos (relativo a peixe), que provoca drásticas diminuições dalgumas
espécies. E no entanto continuam a desenvolver-se modalidades seletivas de
pesca, que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente
ameaçados estão organismos marinhos que não temos em consideração, como certas
formas de plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia
alimentar marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se
utilizam para a alimentação humana.
41. Passando aos mares
tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às
grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de
espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras.
Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num
estado contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25] Este fenómeno
deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do
desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de
métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite.
É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a
compreender como qualquer ação sobre a natureza pode ter consequências que não
advertimos à primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se
obtêm à custa duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42. É preciso investir muito
mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e
analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer
modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão
interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma,
e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém
uma parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo que deve fazer um
inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de desenvolver programas e
estratégias de proteção, cuidando com particular solicitude das espécies em
vias de extinção.
4. Deterioração da qualidade
de vida humana e degradação social
43.
Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que
tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial,
não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual
de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.
44.
Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado de
muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à
poluição proveniente de emissões tóxicas mas também ao caos urbano, aos
problemas de transporte e à poluição visiva e acústica. Muitas cidades são
grandes estruturas que não funcionam, gastando energia e água em excesso. Há
bairros que, embora construídos recentemente, apresentam-se congestionados e
desordenados, sem espaços verdes suficientes. Não é conveniente para os
habitantes deste planeta viver cada vez mais submersos de cimento, asfalto,
vidro e metais, privados do contato físico com a natureza.
45.
Nalguns lugares, rurais e urbanos, a privatização dos espaços tornou
difícil o acesso dos cidadãos a áreas de especial beleza; noutros, criaram-se
áreas residenciais «ecológicas» postas à disposição só de poucos, procurando-se
evitar que outros entrem a perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes
encontra-se uma cidade bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas
áreas «seguras», mas não em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da
sociedade.
46.
Entre os componentes sociais da mudança global, incluem-se os efeitos
laborais dalgumas inovações tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no
fornecimento e consumo da energia e doutros serviços, a fragmentação social, o
aumento da violência e o aparecimento de novas formas de agressividade social,
o narcotráfico e o consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de
identidade. São alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos
últimos dois séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro
progresso integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais
são ao mesmo tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma silenciosa
ruptura dos vínculos de integração e comunhão social.
47.
A isto vêm juntar-se as dinâmicas dos mass-media (conjunto dos meios de comunicação
de massa) e do
mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não favorecem o
desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade,
amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o
risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da
informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num
novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa deterioração da sua
riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e
do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação
de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir.
Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais com os outros, com todos os
desafios que implicam, por um tipo de comunicação mediada pela internet. Isto
permite selecionar ou eliminar a nosso arbítrio as relações e, deste modo,
frequentemente gera-se um novo tipo de emoções artificiais, que têm a ver mais
com dispositivos e monitores do que com as pessoas e a natureza. Os meios atuais
permitem-nos comunicar e partilhar conhecimentos e afetos. Mas, às vezes,
também nos impedem de tomar contato direto com a angústia, a trepidação, a
alegria do outro e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso, não
deveria surpreender-nos o facto de, a par da oferta sufocante destes produtos,
ir crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais
ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48.
O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se em conjunto; e não
podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos
atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto, a
deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais
frágeis do planeta: «Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a
investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as
agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres».[26] Por exemplo, o
esgotamento das reservas ictíicas prejudica especialmente as pessoas que vivem
da pesca artesanal e não possuem qualquer maneira de a substituir, a poluição
da água afeta particularmente os mais pobres que não têm possibilidades de
comprar água engarrafada, e a elevação do nível do mar afeta principalmente as
populações costeiras mais pobres que não têm para onde se transferir. O impacto
dos desequilíbrios atuais manifesta-se também na morte prematura de muitos
pobres, nos conflitos gerados pela falta de recursos e em muitos outros
problemas que não têm espaço suficiente nas agendas mundiais.[27]
49.
Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos
problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do
planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates
políticos e econômicos internacionais, mas com frequência parece que os seus
problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta
quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos
colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem
frequentemente no último lugar. Isto deve-se, em parte, ao facto de que muitos
profissionais, formadores de opinião, meios de comunicação e centros de poder
estão localizados longe deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contato direto
com os seus problemas. Vivem e refletem a partir da comodidade dum
desenvolvimento e duma qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da
população mundial. Esta falta de contato físico e de encontro, às vezes
favorecida pela fragmentação das nossas cidades, ajuda a cauterizar a
consciência e a ignorar parte da realidade em análises tendenciosas. Isto, às
vezes, coexiste com um discurso «verde». Mas, hoje, não podemos deixar de
reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para
ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres.
50.
Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente,
alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões
internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as
ajudas económicas a determinadas políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é
verdade que a desigual distribuição da população e dos recursos disponíveis
cria obstáculos ao desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se
reconhecer que o crescimento demográfico é plenamente compatível com um
desenvolvimento integral e solidário».[28] Culpar o incremento demográfico em
vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar
os problemas. Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo atual, no
qual uma minoria se julga com o direito de consumir numa proporção que seria
impossível generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos
de tal consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço
dos alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada
da mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao
desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível nacional
como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações regionais
complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição ambiental, ao
transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à qualidade de
vida.
51.
A desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e
obriga a pensar numa ética das relações internacionais. Com efeito, há uma
verdadeira «dívida ecológica», particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a
desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso
desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns
países. As exportações de algumas matérias-primas para satisfazer os mercados
no Norte industrializado produziram danos locais, como, por exemplo, a contaminação
com mercúrio na extração minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do
cobre. De modo especial é preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta
usado para depositar resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois
séculos e criaram uma situação que agora afeta todos os países do mundo. O
aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões
nos lugares mais pobres da terra, especialmente na África, onde o aumento da
temperatura, juntamente com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das
cultivações. A isto acrescentam-se os danos causados pela exportação de
resíduos sólidos e líquidos tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e
pela atividade poluente de empresas que fazem nos países menos desenvolvidos
aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital: «Constatamos
frequentemente que as empresas que assim procedem são multinacionais, que fazem
aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro
mundo. Geralmente, quando cessam as suas atividades e se retiram, deixam
grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida,
esgotamento dalgumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da
agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e
qualquer obra social que já não se pode sustentar».[30]
52.
A dívida externa dos países pobres transformou-se num instrumento de
controle, mas não se dá o mesmo com a dívida ecológica. De várias maneiras os
povos em vias de desenvolvimento, onde se encontram as reservas mais
importantes da biosfera, continuam a alimentar o progresso dos países mais
ricos à custa do seu presente e do seu futuro. A terra dos pobres do Sul é rica
e pouco contaminada, mas o acesso à propriedade de bens e recursos para
satisfazerem as suas carências vitais é-lhes vedado por um sistema de relações
comerciais e de propriedade estruturalmente perverso. É necessário que os
países desenvolvidos contribuam para resolver esta dívida, limitando significativamente
o consumo de energia não renovável e fornecendo recursos aos países mais
necessitados para promover políticas e programas de desenvolvimento
sustentável. As regiões e os países mais pobres têm menos possibilidade de
adoptar novos modelos de redução do impacto ambiental, porque não têm a
preparação para desenvolver os processos necessários nem podem cobrir os seus
custos. Por isso, deve-se manter claramente a consciência de que a mudança
climática tem responsabilidades diversificadas e, como disseram os bispos dos
Estados Unidos, é oportuno concentrar-se «especialmente sobre as necessidades
dos pobres, fracos e vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos
interesses mais poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência de que somos
uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais
que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a
globalização da indiferença.
6. A fraqueza das reações
53.
Estas situações provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos
gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo.
Nunca maltratámos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos.
Mas somos chamados a tornar-nos os instrumentos de Deus Pai para que o nosso
planeta seja o que Ele sonhou ao criá-lo e corresponda ao seu projeto de paz,
beleza e plenitude. O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária
para enfrentar esta crise e há necessidade de construir lideranças que tracem
caminhos, procurando dar resposta às necessidades das gerações atuais, todos
incluídos, sem prejudicar as gerações futuras. Torna-se indispensável criar um
sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas,
antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico
acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a
justiça.
54.
Preocupa a fraqueza da reação política internacional. A submissão da
política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras
mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com
muita facilidade, o interesse económico chega a prevalecer sobre o bem comum e
manipular a informação para não ver afetados os seus projetos. Nesta linha, o
Documento de Aparecida pede que, «nas intervenções sobre os recursos naturais,
não predominem os interesses de grupos económicos que arrasam irracionalmente
as fontes da vida».[32] A aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar
de fora tudo o que não faz parte dos seus interesses imediatos. Deste modo,
poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações
filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar sensibilidade para com o
meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações
sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por
sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar.
55.
Pouco a pouco alguns países podem mostrar progressos significativos, o
desenvolvimento de controles mais eficientes e uma luta mais sincera contra a
corrupção. Cresceu a sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda
insuficiente para mudar os hábitos nocivos de consumo, que não parecem
diminuir; antes, expandem-se e desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar
um exemplo simples – com o crescente aumento do uso e intensidade dos
condicionadores de ar: os mercados, apostando num ganho imediato, estimulam
ainda mais a procura. Se alguém observasse de fora a sociedade planetária,
maravilhar-se-ia com tal comportamento que às vezes parece suicida.
56.
Entretanto os poderes económicos continuam a justificar o sistema
mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas
financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade
humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente
ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética. Muitos dirão que
não têm consciência de realizar ações imorais, porque a constante distração nos
tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito. Por isso,
hoje, «qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa
face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra
absoluta».[33]
57.
É previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá
criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres
reivindicações. A guerra causa sempre danos graves ao meio ambiente e à riqueza
cultural dos povos, e os riscos avolumam-se quando se pensa na energia nuclear
e nas armas biológicas. Com efeito, «não obstante haver acordos internacionais
que proíbem a guerra química, bacteriológica e biológica, subsiste o facto de
continuarem nos laboratórios as pesquisas para o desenvolvimento de novas armas
ofensivas, capazes de alterar os equilíbrios naturais».[34] Exige-se da
política uma maior atenção para prevenir e resolver as causas que podem dar
origem a novos conflitos. Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que
maior resistência põe a tal esforço, e os projetos políticos carecem muitas
vezes de amplitude de horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que
será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e
necessário fazê-lo?
58.
Nalguns países, há exemplos positivos de resultados na melhoria do
ambiente, tais como o saneamento de alguns rios que foram poluídos durante
muitas décadas, a recuperação de florestas nativas, o embelezamento de
paisagens com obras de saneamento ambiental, projetos de edifícios de grande
valor estético, progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos
transportes públicos. Estas ações não resolvem os problemas globais, mas
confirmam que o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como
foi criado para amar, no meio dos seus limites germinam inevitavelmente gestos
de generosidade, solidariedade e desvelo.
59.
Ao mesmo tempo cresce uma ecologia superficial ou aparente que consolida
um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade. Como frequentemente acontece
em épocas de crises profundas, que exigem decisões corajosas, somos tentados a
pensar que aquilo que está a acontecer não é verdade. Se nos detivermos na
superfície, para além de alguns sinais visíveis de poluição e degradação,
parece que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia
subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento
evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e
consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios
autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as
decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60.
Finalmente reconhecemos, a propósito da situação e das possíveis
soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento.
Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando
que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações
técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto,
outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode
ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua
presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção. Entre estes
extremos, a reflexão deveria identificar possíveis cenários futuros, porque não
existe só um caminho de solução. Isto deixaria espaço para uma variedade de
contribuições que poderiam entrar em diálogo a fim de se chegar a respostas
abrangentes.
61.
Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma
palavra definitiva e entende que deve escutar e promover o debate honesto entre
os cientistas, respeitando a diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a
realidade com sinceridade, para ver que há uma grande deterioração da nossa
casa comum. A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída,
sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver
os problemas. Todavia parece notar-se sintomas dum ponto de ruptura, por causa
da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em
catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras, uma
vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de forma
isolada. Há regiões que já se encontram particularmente em risco e,
prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema
mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de
pensar nas finalidades da ação humana: «Se o olhar percorre as regiões do nosso
planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa
divina».[35]
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do
meu Pontificado.
Franciscus
[23] Cf. Francisco, Saudação
aos funcionários da FAO (20 de Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985;
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência Geral do
Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de
2007), 86.
[25] Conferência dos Bispos
Católicos das Filipinas, Carta pastoral What is Happening to our Beautiful
Land? (29 de Janeiro de 1988).
[26] Conferência Episcopal da
Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 17.
[27] Cf. Conferência Episcopal
Alemã – Comissão para a pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler,
intergenerationeller und ökologischer Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 483.
[29] Francisco, Catequese (5
de Junho de 2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da região da
Patagónia-Comahue (Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2.
[31] Conferência dos Bispos
Católicos dos Estados Unidos da América, Global Climate Change: A Plea for
Dialogue, Prudence and the Common Good (15 de Junho de 2001).
[32] V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de
2007), 471.
[33] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 56: AAS 105 (2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 1990, 12: AAS 82 (1990), 154.
[35] Idem, Catequese (17 de
Janeiro de 2001), 3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 20/I/2001), 8.
Fonte: Libreria Editrice
Vaticana
w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
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Os escritos em vermelho fosco não pertencem ao texto original.
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